desculpas arranquei 1 dente

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a silhueta de dois gatos sobre as luzes da cidade
ofertar-se a noite
a rua como trajeto para a respiração

depois do fim os rumos continuam longe da gente
o desconhecido pediu 2 chopes 1 espetinho
caiu no chão do severo antes mesmo de terminar o prato
camisa velha 
chapéu de couro velho
par de sapatos velho
ceroula velha
se apagar abruptamente é uma forma de continuar

as horas lendo essa desculpa de alguém
que há I século evita viajar pro interior
você brecha a noite distante

seja luz
pra si

& enxerga agora que o sol já se pôs
enquanto aprendo o sabor do buriti
percorra o pavio
sem se preocupar com o que vem

na pior das hipóteses eu estarei aqui
bebo muita água pra ser atlântico

não esqueça de encher as formas de gelo
& nadar sem medo
quebrar a cara sem medo
dia a dia sem medo
qualquer coisa sem medo
certo como tudo será velho

partilho esta mente-coração
8 mil camadas pra que estejamos aqui
eu sei que eu não sou o que você imaginara
você também não é o que imagina
não tem jeito
viajar ao interior & encarar o rio lamacento
mesmo depois de 100 anos

charme ou gosto adquirido
não é tão divertido assim
se assenta devagar

você devia assistir 1 desses filmes cult coreanos
comigo
talvez não goste
ainda assim fica na cabeça

como essa noite

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Domingo

Naquele dia sentamos frente a frente nas banquetas da cozinha
você disse que não queria romper, brigar ou cair fora
você disse que seus pais gostavam de mim
você disse o quão inteligente eu sou
você disse o quão sensata, madura e gentil eu estava sendo
você disse o quanto eu te apoiei com seus estudos e projetos
você disse, inclusive, que teria filhos comigo.

Você só não disse que me amava. 

os velhos tempos

lembra
quando martelavam nos nossos ouvidos
-seja alguma coisa-?
é como se fosse outra vida,
como se fossemos coisa nenhuma
e,
hoje,
que já fomos tanta coisa,
o mesmo -seja alguma coisa- ainda ecoa
nas paredes de nossas caixas cranianas.

no momento em que nos tornamos
alguma coisa
deixamos de ser outras mil,
nós precisamos,
abrir mão é necessário de vez em quando
mas vocês conseguem contar quantas vezes
perdemos aquilo que segurávamos
com o punho cerrado?

sou os buracos no caminho
o zigue-zague até aqui
as cervejas e os vinis
as palavras ditas e ouvidas,
escritas e lidas,
riscadas e
cuspidas:
sou sendo
sou alguma coisa
sempre fui

estes são os velhos tempos
para que,
quando a nostalgia apertar,
a ilusão seja a ilusão da ilusão:
realidade de que além de velhos,
os tempos de hoje também foram verdade —

tudo aquilo que tentaremos relembrar e sentir
tudo aquilo que podemos confiar
no meio de tantas certezas
das quais desconfiamos
tudo aquilo que escorrerá por entre os dedos
do nosso punho cerrado em desespero
e orgulho.

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parcialmente sob as cobertas,
debaixo da carne e noite adentro,
onde os poemas fazem cócegas,
há um poste solitário, apenas um —
a luz só precisa iluminar a si mesma.
você não sabe —
o seu sangue não corre em vão;
corre com a pressa de quem sabe
a importância da matemática
mas nunca aprendeu a contar.
fecho a porta
e você diz que não há porta.
no mundo real, as pernas erram os passos;
mesmo com os cadarços bem amarrados,
é fácil tropeçar no próprio tropeço.

você não quer
seu sangue derramado inutilmente;
como se apenas o baque do seu corpo
ao cair inerte e sem vida no solo
já não fosse suficiente para fazer a terra hesitar —
e aí, o dia duraria um pouco mais
e o planeta ficaria pra trás.

em vão, as pernas erram pelo mundo real —
seus passos derramados na pressa
correm com o sangue de quem
sabe a matemática das cócegas
onde os poemas fazem-se importantes.
e aí, te espero no fim de uma carta
em que as palavras sonham ser carne.

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Carta 14 – a temperança

Não me peça conselhos,
só tenho histórias

Do passado,
lembrança é invenção

Da saudade,
memórias são mentiras

Do presente,
humor é regra

Das dores,
feridas (que) estão secas

Do futuro,
nem luz, nem frio

Ao tempo,
o respeito é dado

um brinde!

Aos homens covardes que entraram no meu caminho,
meu perdão silencioso

Aos sensíveis,
meu afeto

Aos melancólicos,
minha solidariedade

Aos egoístas,
meu lamento

Aos covardes que tirei do meu caminho,
minha saudação.

 

Rumo

Não tema
e não teima!

O medo é constante,
é aviso
e também apego

meu medo
não tem tamanho,
só não tem cor

mas não o temo
pois
sem o medo
o que seria da coragem
em mim?

Ponta Cabeça

E amanheceu
Eram corpos molhados
Do suor do prazer
Das mãos pelas pernas
Do toque dos braços
Apertos de afeto
Consonante harmonia
Sobrava carinho
Olhares profundos
Sorrisos fáceis
Ouvidos ágeis
Concentrados no instante
Da brevidade do encontro

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Recado dentro do livro

Ah marinheiro!
Como eu queria poder ter seguido viagem contigo.
Não fossem as tarefas que a hierarquia me trouxe,
Teria abandonado timão, âncoras, o barco todo
para viver contigo essa aventura de amanheceres tão distintos
E sempre desconhecidos

Seria de certo, novidade todo dia!
Como voltar a ser maruja,
quando a ansiedade do novo superava o medo do desconhecido,
quando tudo isso não era óbvio.
E ao cair da tarde, a noite chegaria
como um abraço silencioso.

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o sino e o som

eu sou o sino e o som
e a fúria
o sermão
a soberba
o sabão
a sujeira
o sermão e a cegueira

eu sou o sino
se o se se sabe
si em si não
e aí, sou sério
ou sou sarro e saio
o super-homem no jornal
me soa super superficial

eu sou o som
sou o sinto
e sinto, sei
sinto o sou
e não sei
sou o sei e o não
sei o sou e o senão

o sino e o som
sou são somos sou
sexo sagrado
sol e sombra
sal do suor
descanso enfim
sou o sono e o sim

eu sou o sino
a sinfonia
a surdez,
sempre e
sábado
o segredo e a surdina
eu sou a sina

eu sou o sino e o som
algo sacode dentro de mim
que tento ir além e não vou
não vou e dói mas dói e vou
a dor me torna maior
enquanto aviso a todos
que já é hora

eu sou o sino
o som
o sangue
e
não importa o que for,
eu sei que você sabe —
já é hora

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dia

o que você estava fazendo
quando o mundo mudou?
hoje, foi um dia agradável.
apesar do noticiário,
apesar do calor
insuportável.

o que faziam as pessoas
enquanto a história se tornava História?
hoje, também, morreu minha avó.
provavelmente muitos avós
e, claro, netos
(tenho sorte).

tudo cabe num dia,
pouco resta na memória.
de qualquer forma,
seguimos tropeçando
para a risada
ou para o tombo.

9/11/16,
para francisca lamonica
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cidades estranhas

É uma estrada;
possui um vazio
quase mais leve que a neve,
quase mais leve que o nada:
um vazio de criança despreocupada.
A pele sente um sentimento amplo
e o que se vê é um campo,
uma bola, uma boneca,
um beijo na testa
no fim da festa.
Diante dos meus pés,
a estrada se desenrola,
cansado e sem coração,
passo pesado
e caco de vidro na sola,
o corpo é recriado pela canção:
Carrega-se a pedra no meio do caminho.
Mas, de repente,
sinto o farol e me assusto.
Se tento olhar um pouquinho,
meus olhos ardem na luz incerta,
abrem como uma mente aberta.

Paralisado,
eu não tenho certeza se é um sonho.