Apenas

por Danilo Crespo e Pedro Lopes

Quando acordei
Não te vi do outro lado
E pensei
Se o colchão tinha
Me engolido,
Sozinho.

O quarto era glacial
Nosso inverno no ar
condicionado
A boca seca por água
O corpo seco e
Sozinho.

Me perguntei se
Levantar era preciso
E sempre é.
Vi penas no lençol
E chão

Impulso; colisão
Meu corpo esvaiu-se
da física
e levantando,
eu já estava caído.

Quando caí em
Mim, foi você que vi.
E não havia vidro
Espelho?
Nenhum caco de nós
Ou ontem

E te toquei
Como quem toca
banjo;
lentamente ressoamos
parede afora

O vizinho sequer
Reclamou.
Surdo,
Foi absurdo o
Nosso som

E sem regra
sem refrão
a gente cantou junto
uma só
canção.

Mas, sabe quando
O microfone falha
E a segunda voz
Assume. Apenas
Repito: há penas

No chão, na cama,
Em todo o lugar,
Se procuro,
há mais
e se encontro
amor

a televisão
ligada, me diz
que o sono me venceu.

E
insiste em mostrar
que você
acordou
sem dormir

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Expectativas

Provavelmente, ela tem razão e eu sou um egoísta.
  Vou começar pela garota de domingo porque é o único lugar em que eu posso começar sem me perder. No domingo, eu liguei para ela e a chamei para ir comigo fazer alguma coisa. É como eu sempre falo: não consigo aceitar essa nomenclatura que as pessoas se acostumaram, sair. O inglês impôs o date e eu não consigo aceitar isso, sempre acho que é idiota e forçado demais. Ainda assim, eu chamei a garota para fazer alguma coisa e ela perguntou “num domingo?” e, bem, nós fomos a um restaurante de comida italiana.
  As coisas aconteceram “tudo bem”. Nos encontramos e tivemos uma conversa pouco empolgada sobre o fim de ano, o natal e essas coisas que estavam por vir. A única coisa fora do comum foi que nós discordamos sobre algo e, não importa o quê, mas geralmente num desses dates ninguém discorda. A verdade é que ao pagar a conta eu estava entediado e queria ir pra casa, voltar e ficar ouvindo uma das minhas últimas descobertas musicais, Shad K.
  Antes de sair nós já estávamos nos beijando e isso se intensificou no carro. Eu não queria mas ela falou que a gente poderia ir para esse ou aquele motel. Pensei em algo para dizer, mas tudo soou um lixo e eu me arrependi de ter saído de casa no domingo. Fomos. Lá, as coisas não aconteceram bem como o esperado. O esperado: chegamos, tiramos a roupa, transamos, ficamos deitados por um tempo, ligamos para a portaria, eu pago a conta e nós vamos embora e, provavelmente, nos vemos no máximo mais uma vez.
  O que aconteceu: nós no beijamos e ela já deitou na cama tirando a roupa. Ela tinha cabelo comprido preto e alguns quilos a mais, que eu gostava, de verdade. No início, tudo ia bem, até que quando chegou a hora do show, eu brochei — na hora, é claro que eu não fazia ideia do porquê, mas eu estava pensando em mil coisas e nada relacionado a mulher na minha frente. Tentei qualquer coisa, não funcionou. A garota de domingo sentou na cama e tirou um cigarro, foi na janela e começou a fumar.
  “Você não fuma, né?”, eu disse que não e ela quis me ensinar a fumar. “Talvez essa não seja a melhor hora para um cigarro, você não acha?”. Ela riu e disse que esse tipo de coisa acontece o tempo. Especialmente com mulheres. Eu fiquei quieto, levantei, vesti uma cueca e falei para irmos embora. “Só se você fumar um cigarro.” Peguei um e botei na boca, ela me ensinou a tragar (eu já tinha tentado antes, mas nunca fui bom nisso). “Você fica bonito fumando.”, ela me falou ainda completamente nua e na janela. “Não é pra isso que serve o cigarro?”. Ela riu, não sei se entendeu a ironia e foi se arrumar. Pagamos e fomos embora.

Isso foi no domingo. É claro que, por mais que eu não quisesse vê-la de novo, agora era uma obrigação moral, eu tinha que transar com ela. Mandei uma mensagem carinhosa no dia seguinte, ela nem respondeu. Entendi o que significava, eu acho.
  Durante a semana, eu encontrei uma das poucas pessoas que eu tinha paciência para ficar conversando por longos períodos. Fernanda era uma amiga da minha irmã (oito anos mais velha) que, aos poucos, foi virando minha amiga. Acredito — e já disse isso pra ela — que nunca tivemos nada justamente porque quando nos conhecemos tanto eu quanto ela tínhamos namorado e, depois de mais de dois anos se falando, é que nós dois ficamos simultaneamente solteiros. Ela costumava a analisar a realidade de uma forma fria e objetiva, eu gostava disso. A maioria das pessoas nunca analisa porra nenhuma.
  Nós fomos no mercado juntos comprar cerveja. E eu contei a ela minha história com a garota do domingo, mas não consegui dizer que tinha brochado. Só disse que foi ruim e que eu tinha que sair com ela de novo pra acontecer de novo e ela ficar com uma boa impressão de mim. Começou a chover e nós ficamos presos no mercado. Nós esperamos a chuva abrandar em silêncio, estávamos no limiar do caos da tempestade e da cobertura do supermercado. Foi de repente que ela, a Fernanda, virou pra mim e disse um pouco indignada: você é um egoísta.
  Eu não tive reação. Fiquei esperando que ela falasse mais. Tudo que eu poderia dizer soaria o mais egoísta possível nos próximos segundos. Depois de um tempo me olhando ela acrescentou que eu não dava a mínima para os problemas dos outros e tratava os meus próprios problemas como a maior dúvida que a humanidade já encontrou. “Eu não sou assim.” Ela deu exemplos e eu apenas tentei dizer o que eu achava de cada um.
  A chuva diminuiu e nós fomos lá pra casa. Bebemos e eu fiquei mais quieto que de costume. Em certo momento ela disse que não queria ter me ofendido e eu disse que ela não tinha me ofendido. O problema é que eu estava pensando se eu era egoísta e quanto mais eu pensava em mim, mais eu me sentia egoísta. Isso, claro, além de arrogante. Depois de certa hora, a Fernanda acabou indo para a casa dela que não era muito longe da minha e ela me desejou boa sorte com a garota de domingo.

Eu fiquei realmente perturbado com isso. No sábado fui ao clube. Ao invés de ir para a água ou qualquer coisa, eu só fiquei com a minha cerveja observando as pessoas e pensando o que eu achava de cada um. Um ódio instintivo de mim mesmo e a vontade repentina de não falar sobre mim nunca mais duraria bastante tempo, pelo menos em relação a Fernanda.
  Fazia sol e tinha muita gente. Na piscina, muitas crianças com seus brinquedos aquáticos, se matando com qualquer coisa. Garotos corriam também por ali. Numa parte mais rasa da piscina, três mulheres bonitas (duas dela com mais de quarenta) deitavam em espreguiçadeiras. Aquelas bundas de chamar o olho. Algumas famílias só pegando sol em volta da piscina. E a família do meu lado era um velho bem velhinho que me lembrava a estátua do Drummond de Andrade e sua filha de talvez uns cinqüenta anos.
  Em certo momento, ela falou com ele que ia tomar um banho rapidinho e que depois eles podiam ir embora. Ao sair, o velhinho vira pra mim e puxa conversa. Eu nem sei conversar com pessoas da minha idade, imagine velhos. Ainda assim, ele fala algumas coisas. Suas mãos tremem um pouco e eu não consigo olhar para ele direito e fico assim, meio de lado, como se tivesse pegando o sol na parte certa do corpo.
  “Você sabe, rapaz, eu venho aqui com a minha filha vai fazer um ano semana que vem. Eu venho com ela porque tem algo aqui que aconteceu comigo quando eu tinha um pouco mais que a sua idade. Não consigo lembrar.” Ele olhou pra mim de cima a baixo e disse que eu parecia com ele quando ele tinha a minha idade. Perguntei algumas coisas sobre o que ele queria lembrar mas ele falou que só sabia que era algo muito importante e não sabia mais nenhum detalhe.
  Peguei sol e fiquei ouvindo o velho falar até a filha dele chegar. Eles foram embora e eu fiquei subitamente interessado numa história alheia, então tentei ouvir conversas por aí. Até que me senti mal por estar sendo tão idiota e decidi ir embora eu também.

No domingo, nós fomos “fazer alguma coisa” de novo. A garota de domingo estava especialmente bonita nesse dia. Dessa vez, foi algo mais simples, a gente só foi tomar uma cerveja. Nós conversamos e eu tentei não falar nada sobre mim. Só o que ela perguntasse e sem me estender. Em algum momento da noite, ela acabou perguntando se tinha algo de errado e eu apenas sorri e disse que estava tudo bem.
  Acho que ela gostou de falar mais do que ouvir. As pessoas gostam disso. Depois de um tempo, ela já tinha me falado que queria ir mais ao teatro e que ultimamente não estava com cabeça pra ler nada e só ficava vendo reprises na televisão por assinatura. Minha cabeça mexeu mais do que minha boca. Ela decidiu que gastar dinheiro num motel era bobeira e nós fomos a casa dela.
  Lá, ela me mostrou um projeto dela que ela tinha mostrado para pouquíssimas pessoas. Era um álbum de fotografias chamado “O que eu não posso ver” e que só tinha fotos de pessoas com olhos fechados. A variedade era grande e eu fique bastante impressionado. Tinha uma criança de olhos fechados e sorriso enorme, um velhinho que talvez dormisse e até uma garota — essa bem bonita mesmo — que parecia gemer de olhos fechados.
  Dessa vez, eu falei um pouco mais e disse que achei bem interessante. Quase comentei que não sabia que ela tirava fotografias, calei a boca quando me ocorreu que ela provavelmente já tinha me dito isso. Sentei na cama dela e ela saiu. Depois voltou com algo na mão, apagou a luz e me vendou. Enfim, nós transamos.

Foi bom. Durante a semana, minha irmã teve que fazer uma cirurgia e eu tive que entretê-la por mais de três horas até os cara virem botar a anestesia e etcetera. Chamei a Fernanda mas ela não podia ir, estava trabalhando.
  Ela me perguntou o de sempre. E sim, estava tudo bem. Não, não tinha nenhuma garota. Nossa mãe tinha comentado que eu tinha saído com alguém no domingo. “É, mas nenhuma namorada…”. Minha irmã mandou eu tomar jeito, que eu já tava velho demais pra ficar andando por aí a toa.
Suspirei. “Deixa de bobeira.” Ela puxou a minha mão de repente e falou para eu olhar nos olhos dela. “Deixa de bobeira, você”. E eu fiquei quieto mais uma vez. Tentei falar com ela sobre qualquer coisa. Contei sobre uma exposição de fotografias que eu tinha ido, fotos de pessoas de olhos fechados, bem versátil e bem bonito.
  “Onde foi isso?”. Numa galeria particular de um dos caras do trabalho.
  Egoísta… eu pensei. Egoísta não, mentiroso. Inútil. Nós conversamos mais sobre qualquer coisa até que a Fernanda chegou e ela e minha irmã começaram a falar sobre coisas antigas que eram estritamente ligadas a elas duas. Fiquei em silêncio, um pouco rejeitado, um pouco aliviado.

Tomei um gole da cerveja e contei ao velho sem memória sobre minha irmã. Ele nunca falava nada na verdade, só ouvia o que eu tinha a dizer e esperava a vez dele de falar. “Deu tudo certo, ela saiu do hospital ontem.” Ele balançou a cabeça. Sua mão tremia menos, ainda tremia no entanto. Sua filha não era muito bonita, tinha ainda um corpo bonito, no entanto. Pelo menos, ela devia ter no mínimo 45 anos. Não comentei com ele, embora se eu tivesse comentado ele não teria dito nada a respeito.
  Olhei para as pessoas em volta. O velho estava muito chato. Toda a piscina estava cheia de gente. Não era grande surpresa, o Natal agora estava realmente próximo e o sol nunca estivera tão intenso em todos os tempos. Uma criança com lábio leporino me chamou atenção por um tempo. Crianças não conseguem prender meus olhos e, assim, eu comecei a tentar notar outras coisas. Vi um grupo grande de pessoas sentados à mesa e rindo e conversando excessivamente alto.
  Minha cerveja estava no fim e meio quente. Bebi assim mesmo. O velho voltou a me falar como todo “santo” sábado ele ia naquele lugar porque tinha algo para lembrar ali. Eu não dei muita atenção. Um homem me despertou um sentimento de ódio em mim que eu não sentia há muito tempo. Na beira da mesa havia um homem com uma risada ridícula e um cordão de ouro enorme. Mais: um relógio de ouro e aquele jeito tipicamente babaca de bater no ombro dos outros e rir exageradamente. Senti uma certa repulsa de olhar para ele. Pensei que era o típico ricaço nojento.
  De repente, o velho me contou como trabalhou quarenta anos da sua vida na Petrobras. E falou mais, como lembrava da primeira vez que vira uma televisão a cores na casa do vizinho. “Era uma porcaria. Era uma porcaria comparado com a televisão de hoje.” Minha vez de balançar a cabeça afirmativamente. Fez-se silêncio. Pensei em contar a ele sobre a garota de domingo. Antes que eu pudesse abrir a boca ele completou “Era uma porcaria, mas era melhor.”
  O homem da corrente de ouro continuava falando. Da onde eu olhava, só dava pra ver do peito pra cima, mas eu conseguia adivinhar sua sunga vermelha. Seu jeito extravagante, sua superficialidade com os amigos do trabalho. Aquele tipo de sujeito que quando o parceiro olha pro lado errado ele pisa na cabeça dele e toma o seu lugar na empresa. O riso fácil, o exagero na extroversão, eu parei de olhar para ele. O velho voltou a falar sobre como aquele lugar o lembrava de algo, ele só, mais uma vez, não conseguia determinar o quê.
  Passou um tempo e a filha do velho chegou. Nós trocamos algumas palavras cordiais e eles foram embora. Decidi levantar para pegar outra cerveja.
  Egoísta, mentiroso: eu sou um babaca?
  O pessoal da outra mesa começou a se despedir e o primeiro a sair da mesa foi o homem da corrente de ouro. Fiquei em silêncio me sentindo um idiota quando ele mexeu seus braços e arrastou sua cadeira de rodas de perto dos outros. Babaca, seu babaca: o cara tá numa cadeira de rodas. Peguei outra cerveja e o homem das cadeiras de roda também.
  Ele vestia um calção laranja.

Na véspera de Natal, eu discuti com minha mãe e minha irmã. As duas se juntaram contra mim para me falar como eu já tinha idade suficiente para ser um homem e como eu continuava um menino. Irresponsável foi a palavra utilizada. Mandei as duas irem a merda e saí de casa. Peguei o carro e dei umas voltas sem saber para onde ir. Eu tinha bebido um pouco, nada que me atrapalhasse a dirigir. Liguei para a Fernanda e ela gritou comigo. Não de raiva, mas muito animada. Bêbada, sem dúvida. Fui na casa dela buscá-la.
  Ela veio bem vestida com o cabelo preso de um jeito diferente e perfumada. Arrumada para o Natal. Brinquei com ela — “Tentando seduzir um primo, é?”. Ela só ria e não respondia. Nós andamos até a Boa Viagem e ficamos observando o mar de lá. O quiosque que fica aberto sempre estava fechado, era Natal afinal.
  Nós ficamos sentados e eu contei a ela que tinha brigado com minha irmã e minha mãe. Ela só sorriu e falou que elas não importavam. Que eu não conseguia olhar a imagem como um todo. Não entendi. Falei mais sobre como eu estava certo e elas estavam errado. Fernanda parecia não me dar atenção nenhuma. Decidi que era melhor a gente ir embora.
  Quando chegamos, a deixei em casa. Antes de sair do carro ela me abraçou com força e ficou a menos de um palmo do meu rosto para dizer de novo “Você é muito egoísta.”

No domingo seguinte (véspera da véspera de ano novo), a garota de domingo me ligou. Ninguém tocou no assunto da gente não ter saído no domingo anterior. E dessa vez, ela me chamou para comer alguma coisa, não qualquer coisa: minha comida preferida, a Japonesa, ela sabia. Nós fomos.
  Conversamos sobre nossos dias de Natal. Primeiro ela falou como não passava um Natal em família como desse ano e como tinha sido bom. Depois foi minha vez de falar todas as merdas que não tinha tido ninguém para escutar direito ainda. Como tinha sido uma merda; eu nem estava mais brigado com minha mãe e irmã, mas eu ainda me sentia um pouco injustiçado. Elas me enchendo o saco qualquer oportunidade que tinham. Eu só estava tentando ser um bom irmão, eu só tento ser um bom filho.
  Bebemos uma cerveja japonesa, Sapporo, boa e cara. Comemos todas aquelas coisas gostosas e comecei a falar de repente sobre coisas mais leves. Disse que ela tinha que ouvir “Madvillain”, que ia mudar a opinião dela sobre hip hop. Ela riu dizendo que achava que não era muito a onda dela. Mas eu insisti: “Madvillain é a obra prima do hip hop. Você tem que ouvir o cd deles Madvillainy.” E nós fomos falando sobre um monte de coisas e eu acabei pedindo uma garrafa de saquê que a gente matou antes de ir embora.
  Decidi levá-la de carro lá pra casa. Ela parou e fumou um cigarro antes de entrar. A apresentei para minha mãe e irmã ainda levemente puto. E bêbado. Acho que as duas não gostaram, mas não importava. Fomos para o meu quarto e foi melhor que bom dessa vez.

No dia seguinte, Ano Novo, decidi passar no clube. Sem ninguém conhecido. O velho estava lá. A filha dele também e mais o resto da família inteira. Num momento antes da virada, contei a ele sobre a garota de domingo. Ele não comentou nada como sempre. Na verdade, ele estava diferente de sempre. Olhava fixamente para um ponto da piscina, um ponto que não havia absolutamente ninguém.
  Meia-noite chegava e a família dele vinha sendo muito gentil comigo porque eu conversava com o mais velho deles. Disse que o prazer era todo meu. Sorrimos, brindei com eles, champagne.
  A contagem regressiva começou e, no final, fogos de artifício diversos. Meu celular tocou, minha mãe me desejando um ano novo melhor do que qualquer ano da minha vida. Notei que o velho continuava olhando o mesmo ponto. Outra vez, o celular tocando de novo, virei um copo inteiro de espumante e atendi a garota de domingo dizendo que esperava que eu tivesse um bom ano. Um ano em que eu pudesse ver as coisas.
  Depois de uns dez minutos, os fogos diminuíram, mas animação das pessoas continuou. Eu continuava sentado ao lado do velho. Meu celular tocou mais uma vez: Fernanda. Ela estava claramente bêbada e gritava coisas ininteligíveis. No final, tudo que pude entender foi algo como “Feliz Ano Novo”, “Te amo”, “Te odeio”e “Egoísta”.
  Desliguei um pouco atordoado. Na verdade, desde o dia de Natal a gente não se falava voz a voz, apenas mensagens de texto. As coisas estavam estranhas então e mais estranhas ainda agora.
  O velho do nada fez um barulho com a boca que só eu ouvi. Sua mão trêmula apontava para o ponto a que ele olhara a noite inteira. “Ali, foi ali”. Perguntei como quem presta socorro, mas claro, a serviço da minha curiosidade inchada “O que aconteceu ali?”
  Ele olhou perdido para mim e disse “Eu não consigo lembrar.” Por um tempo, fiquei com uma certa irritação em relação a ele. Não durou dez segundo e eu comecei a sentir pena. De nós dois. A agonia de não lembrar alguma coisa nunca tinha me deixado tão mal assim. Eu conseguia me enquadrar naquele olhar perdido e na mão trêmula do velho, no entanto. Eu estava pensando em como 2013 só trazia mais dúvidas e nenhuma resposta, como eu odiava dúvidas. E eram maiores do que deviam ser: de um lado, havia essa garota de domingo que eu não sabia, do outro havia a garota de sempre, Fernanda, que eu também não fazia ideia.
  O álcool devia estar começando a me afetar, quando eu senti o peito tomado. O velho estava me contado que algo muito importante acontecera ali naquele mesmo clube há muito tempo atrás, quando ele tinha minha idade.
  Eu sentia que podia dizer o mesmo. Tudo estava tão longe das minhas mão, tão distante de fazer o mínimo sentido.

 

Mensagem

Depois da hora
breve
que antecede o dia inteiro,
no vão entre seus olhos
e óculos
instaurou-se um nevoeiro.

São frágeis os horários,
o osso pesa,
a pálpebra mal obedece.
Só depois de uma dose de café
com trabalho
a goela relaxa e o dia
desce.

Vai viver em preto e ontem
uma existência rodeada de
memorabília
aquele que entra de cabeça
na névoa
e o hidrogênio como concreto
faz dele ilha.

Decerto que
quem espera nunca alcança.
Quem espera,
quem respira, quem suspira
espera sentado e se fica esperto
chega lá e não descansa.

Acredite menos em mim
ou na minha sabedoria
e mais na própria
crença.
Se hoje ando torto,
triste,
devagar,
não é por doença.

Embora esperar não dê certo,
dê um tempo a mais
apenas.
Ainda é cedo,
toda corrida agora
pode levar a distâncias
que amanhã parecerão
nada distante,
pequenas.

E se não me ouve,
quando clarear o céu,
quando já não houver mais
nevoeiro,
você verá quanto tempo pode durar
um dia
inteiro.

ribs on the bárbara

os carros são pequenos:
vão, voltam, param, correm, freiam.
as pessoas são pequenas também,
os copos americanos carregam pouco líquido.
tudo que se engoliu ainda pode
ir embora a qualquer momento
como um vulcão.
tudo?

dando de ombros;
o terrível filme visto numa noite,
a piada sem graça que fez rir sem motivo,
toda culinária amadora no estilo omo,
um turbilhão de não seis.
isso tudo pode vir
goela acima goela a fora?

a caixa torácica
é uma caixinha de surpresas.
depois de ver um curta
sobre toda a história da humanidade
diante dos olhos,
a pergunta que fica é idiota,
ainda assim insolucionável:
como lidar com um cabeça dura?

uma cabeça é pequena.
fios de cabelos são difíceis até de enxergar.
essas coisas, assim, me deixam assim assim.
parece que ser amigo dele
é uma corda.
bamba, pequena.
frágil.
e embora eu saiba que,
com a respiração presa,
você pesa menos que o ar,
é muito difícil.
sobre a corda bamba
ou você cai e acaba com o circo
ou você cai e todos os ossos
do seu corpo
e do dele
se partem.
você cai de qualquer forma.

a caixa torácica teme.
a cabeça vira só uma maquininha.
os copos americanos carregam pouco líquido.

como a vida como um furacão como a vida


três lustros não são um furacão
quando por motivo de sinuosidade
no percurso do tempo ocorre um acidente terrível
e perde-se os desprazeres da mocidade,
as decisões erradas,
a distorção temporal entre júbilo e
espelho, espinha, espera, esperança.

fora isso, você está no olho do furacão, meu amigo.
nos olhos da onda furiosa
que te ilumina um corredor escuro
e te traz de volta do futuro
com o sabor do cafézinho de sexta passada.

com mãos grandes
e ideias reduzidas a vento,
basta rodopiar e rodopiar,
de volta a vida como um furacão
como é vida de um passo atrás:
como se você tivesse aprendido.
como se você não se deliciasse
com os desprazeres e a
melancolia da vida igualmente
como se tivesse três lustros vivido.

abrace o desgoverno, amigo.