Preto e branco

No espelho, um estranho me olha.
Em vinte e poucos anos,
vivi mais que o dobro do tempo.
O corpo mal se segura direito.
Me preocupo em não me preocupar:
Uma vez que você consegue o quer,
é então que se tem algo a perder.











Um beijo

Sou eu. Sou eu on the rocks hoje a noite.
  De cabeça é sempre difícil lembrar de qualquer coisa sem um estímulo. Sem ver aquele objeto que abre um baú cheio de coisas há muito esquecidas. Pelo tempo, por vontade.
  Tinha uma menina loira, surpreendentemente bonita. Seu nome eu nunca associei a nada, mas hoje me faria pensar em cinema. Ela me disse uma vez, “Cada dia é uma história nova.” Isso foi um pouco depois, na verdade.
  Hoje, em 2012, as coisas estão se rejuvenescendo, ou lutando para se rejuvenescer. Enquanto aqui toca umas músicas da década retrasada, vem a menina de cabelo preto para mim e diz, Vamos lá, agora?
  E o que me lembrou da menina loira de 98 foi justamente isso. As palavras saíram da minha boca, sem nem me dar conta. “Espera o fim de semana, e nós podemos fazer tudo virar realidade.”
  A frase original eu não havia dito, mas sim ouvido. Da menina loira, em 98. Eu tinha mais idade que uma criança e muito menos que um adulto. Eu ficava nervoso só de pensar nela, eu fingia para mim mesmo que não estava pensando nela, mas eu estava. Não tinha como escapar. Todo dia, um sorriso, umas palavras, um botão interno dentro de mim se acionava. A verdade era que aquilo seria impossível. Ainda assim, a parte de mim que sonhava em ser jogador de futebol e driblar todo mundo, essa parte específica, acreditava na esperança de que não era impossível. A menina loira era linda, o que eu rapidamente descobriria que era o de menos.
  E um dia, sem mais nem menos, duas mãos taparam meus olhos. Apalpando eu não soube dizer quem era. Então, perguntei quem era. Os dedos dela se abriram levemente e eu pude ver um vislumbre da vida entre os dedos. Algo incrível aconteceu na nossa frente e todo o colégio se virou para a quadra. No segundo seguinte, ela falou no meu ouvido: “Espera o fim de semana, e nós podemos fazer tudo virar realidade.”
  Não consigo lembrar de nada que aconteceu na quadra. Nem nada mais que aconteceu nesse dia. A minha próxima memória é com ela, no domingo, antes da igreja. Sentada na árvore, me esperando. O sol forte. Eu andei até ficar frente a frente com ela (nós tínhamos quase a mesma altura) e foi isso. Os holofotes em mim, tudo que eu esperei nos meus anos todos de vida e a gente fica incerto, sem a menor ideia do que fazer para tudo voltar a normal. Um beijo, um riso e o ponto de onde não há retorno.
  Ela desapareceu depois. Só no dia seguinte. E no dia seguinte, nada foi dito. Então, o que eu deveria dizer?
  Nada continuou sendo dito, nosso nada habitual. Como se fosse um brinquedo. Eu brinquei e eu queria brincar, queria muito brincar daquele beijo. O medo era a máquina explodir e eu perder tudo. Afinal, era uma máquina de pele macia, cabelos loiros e as únicas coisas que faziam sentido no mundo.
  O curso da vida seguiu com essa severa punição. Eu nunca sabia, eu nunca sabia nada. Eu nunca sabia quando a gente ia deitar no chão da casa dela e contar histórias de família. E se beijar, depois. Ou não se beijar. Eu era o príncipe encantado, mas no sentido do encantamento de uma bruxa. Uma bela bruxinha. Eu nunca sabia falar, embora eu tivesse tentado.
  Eu só sabia que ela odiava quando as porções do prato dela se encostavam. Ou que ela, quando precisava extravasar uma raiva, tinha mania de encharcar uma toalha e depois torcer com toda força até a toalha ficar seca. Sabia que ela chorava todo dia vinte e três de julho e que se sentia nervosa diante de gente dormindo, por causa da mãe.
  O momento de maior confusão foi quando começaram as festas de quinze anos. Nós íamos juntos, nós éramos melhores amigos há algum tempo. Eu sabia da mãe dela, o pai dela me conhecia, minha mãe fez um bolo de aniversário para ela. Essas coisas. E depois de juntos, e eu sem saber me mexer num terno um número acima. Ela ria de mim. É a única memória que eu posso ligar à palavra graciosidade. E, como sempre, sem mais nem menos, pá. Ela fica com um menino. E sorri pra mim. E como sempre, eu não sei nada.
  Num recorte sem sentido, nós estamos rolando no chão depois disso. Levemente embriagados pela terceira vez, na casa dela, após a última festa de quinze anos. E os beijos já não são mais apenas beijos. São beijos corporais. São beijos completos. Adultos. São beijos complexos. Para serem estudados por cientistas nucleares. Ainda com o mesmo impacto sobre mim. E o mesmo sofrimento, a mesma tortura. Uns “me liga quando chegar em casa” e semelhantes, ela até ficou comigo em público pela primeira vez, embora a maioria já soubesse.
  Eu tinha medo. Porque a minha vontade maior era pegá-la pelos dois braços e resolver, e falar com ela, falar sobre a gente, resolver. Virar namorado, provavelmente. Mas a perfeição que eu via nela e toda nossa harmonia equilibrada numa ponte sem corrimão, isso tudo, era um medo. Medo do que eu precisava, medo que eu precisava.
  Até o dia da formatura. Em que nós bebemos, dançamos. Ela chorou, não sabia porquê. E nós saímos da festa às seis horas da manhã. Pegamos um táxi. Ela deu o endereço da casa dela. Nós entramos de fininho. O pai dela devia ter chegado da mesma festa duas horas antes. Dormia profundamente. A essa altura, nós estávamos sóbrios. E nus, no quarto dela. Foi a primeira vez, tanto dela quanto minha. Não foi especialmente bom, mas foi. Foi o que foi e significou muito. Foi o dia em que ela me deu o beijo mais simples de todos. O beijo capaz de derreter todas as ideias que eu tinha criado e fermentado, capaz de derreter todos os meus orgãos. A única coisa que eu consegui fazer foi puxá-la para perto do meu peito com força.
  Apenas uma coisa dita, foi ela quem disse. Cada dia é uma história nova. E nós dormimos, não sem antes olhar para uma foto nossa no porta retrato em cima da escrivaninha. Na foto, ela está pulando nas minhas costas e nós estamos sorrindo da forma mais natural.
  Nesse dia, eu acreditava em acordar junto. Em acordar. Em ficar olhando o tempo. O sol forte. O dia nublado. A chuva gostosa. Nós acordamos juntos.
  No dia seguinte, eu fui para casa cedo. Ela me levou até a porta e nós nos beijamos. E uma semana depois, ela foi para a Inglaterra. O pai dela disse que ela chorou e que não tinha coragem de me ver. Ela foi estudar teatro na Inglaterra. E eu nem soube disso, eu nem soube o que fazer.
  Mas hoje, hoje sou eu. Sou eu, on the rocks, num terno com a gravata frouxa começando a me animar com a música. Sou eu, eu. Sorrindo submerso. Sereno. Dançando comigo, a menina de cabelo preto me joga para um lado e para o outro e faz o que quer. Eu acho engraçado, eu me divirto; num tropeço, eu quase deixo meu copo cair e ela me chama de distraído, quando, na verdade, por um tempo eu fiquei dormente com as minhas memórias. Como se eu fosse velho, eu não sou. E o futuro dançava na minha frente. O presente, na verdade.
  Quando a menina loira foi embora, a única coisa que eu consegui pensar foi que eles não saberiam quem ela era, não como eu. Ninguém nunca ia saber. Eu nunca quis que ela fosse.
  Disse à menina de cabelo preto que ia na cozinha respirar um pouco.
  O problema dos tempos. Hoje, eu tenho que ocupar minha cabeça o tempo todo. Se não acontece, eu me distraio e estou pensando em algo que eu não quero. Geralmente em amanhã. Gerando uma ansiedade que quase é uma força de atrito. As bordas do meu cérebro arranhadas. Se não é amanhã, é pior. É ontem. E mesmo sendo ontem, eu não penso muito nela, só quando alguma coisa me lembra dela. Tento balançar a cabeça, tenho que evocar uma bandeira branca. Com vento batendo. Acho que nunca funciona de verdade.
  O resto de tudo que aconteceu entre mim e ela é uma piada de mau gosto. Quase uma sequência para um filme que não precisava de sequência. Você anda em direção a alguém, esperando palavras e. Esquece que o pior pode acontecer, o pior não é o pior. É algo risível. Muitos anos depois e há poucos anos atrás, eu a encontrei numa noite, perto da faculdade, no meio de uma multidão. Ela estava diferente, certamente não tão bonita, mas ainda, ainda, ainda, ainda ela. E ela seria para sempre ela.
  Gritei seu nome de longe, ela virou para mim, fui me desvencilhando das pessoas, até ficarmos frente a frente. Pensei em muitas coisas que queria dizer, nada fazia um sentido real. Depois que ela viajou, nós até trocamos algumas mensagens, até que perdemos contato. Enquanto meu cérebro calculava o que deveria ser dito, o dela já tinha uma solução na cabeça. Nós nos beijamos. Um beijo que eu não sei dizer.
  Tem coisas bobas que mudam a gente, coisas bobas que nem foram importante, mas por algum motivo nossa memória inconsciente se agarra àquilo com todas as forças. As pessoas reclamam, o problema é que eu não consigo evitar. E eu nem sei explicar porquê faço isso. Eu sei o que eu levei da menina loira, eu só levei um tempão para perceber.
  Ela parecia contente. Depois de nos beijarmos, eu falei. Falei que era um sinal, que era o destino. Falei que no dia seguinte era a minha vez de viajar. Para a Alemanha. Quando disse isso, ela levantou as sobrancelhas. Eu continuei: mas não, não! É um sinal. Eu vou cancelar, eu vou ligar agora e cancelar a passagem, a hospedagem. Sabe, eu realmente não preciso. E continuei falando. Mas já estava tudo perdido.
  Não, não, não… Não faça isso, não, não. Vai estragar tudo. Foram as palavras dela meio que junto das minhas, meio que junto do turbilhão de coisas e pessoas barulhentas a nossa volta. Nós estávamos falando bem alto.
  O meu raciocínio nesse momento estava em outro ponto. Você não quer acordar do meu lado? Você não quer me ver acordar? Você não quer que eu acorde? O rosto dela se contorceu numa mágoa ou numa dor que eu não conseguia entender. Não… E ela saiu correndo e os homens por perto me seguraram, porque eu a tinha feito chorar. Eu acabara de perder o penalty na final da Copa. Foi tudo muito rápido. O meu corpo estava se comportando de forma estranha. Não fosse a mulher sentada do meu lado lotada de Rivotril, eu teria cometido o suicídio em pleno vôo.
  O show era dela. Quando eu acreditava em acordar junto, ela nem uma única vez na vida fez uma promessa. Ela sabia o que eu nunca sabia. Ela sabia que o nosso tempo junto só poderia existir do jeito que existiu. O medo que eu tinha, ela transformara em técnica. Nós dois poderíamos ter durado três ou quatro meses juntos e no final das contas ficamos quatro anos do jeito que ficamos. O meu sofrimento era o sucesso dela. Mas eu tenho que admitir que foi o melhor sofrimento da minha vida.
  Volto e na minha frente mais um mistério gira e junto gira a saia do vestido, vermelha. Hoje a noite, sou eu on the rocks. Ela me dá um beijo e reclama que eu pareço cansado. Eu rio e faço o sinal de ‘explico depois’ com a mão. Meu olhar, meu whisky, minha gravata e meu cansaço são a imagem da decadência. Para todos, não para mim. O whisky é uma alegria, a gravata está frouxa e o olhar não entrega que eu estou sorrindo, mesmo submerso. Você tá cansado, ela me pergunta. Com os meus braços em volta dela e meu corpo por trás, dou um beijo atrás da orelha antes de responder que eu trabalhei a noite passada e não dormi. Mas vou acordar e te esperar acordar.
  Ela sorri e não diz nada. Meu copo vazio se perdeu. Acabo sentado numa poltrona. Não demora muito e ela me aparece de novo. Vamos embora. E na minha cabeça, eu quero que tudo aconteça perfeitamente. Porque a essa altura é o que faz o dia se perder. Nós pegamos nossas coisas. Cambaleamos no escuro, ela me segura. O táxi já está a espera. Eu rio sozinho. Acho engraçado que eu estou deitado no banco de trás com a cabeça no colo dela. Ela faz um carinho no meu cabelo, passa a mão na minha barba de dois dias. E me dá um beijinho no nariz.
  Nós chegamos, eu levanto, saio, vou, abro a porta, tiro o paletó. Cambaleio menos, chego e deito. Ela está do lado da cama, de pé, e me fala. Vou pra casa, tá? Eu resmungo para ela ficar e seguro a mão dela, puxo a mão dela, mas nada. Um beijo. Até sábado. E ela vai embora como um gato.
  A noite vira dia. Eu e minha incapacidade de acordar tarde levantamos metade do corpo. Ainda estou com a mesma roupa. Dor de cabeça. Ponho a cabeça de volta no travesseiro e olho para o teto. Ele é branco como uma bandeira branca. Sinto a ressaca agredindo todo meu corpo. A vida é incrível.

 
[18/08/12]

O jogo dos sete erros

O telefone tocou

(primeiro erro:
um palhaço chorando em público

segundo erro:
ter que lembrar de dar atenção à brisa

terceiro erro:
as traduções soon to be misleading

quarto erro:
as idéias soon to be mistakes

quinto erro:
tinta vermelha na consciência branca

sexto erro:
no vazio, uma breve euforia
seguida pela asfixia)

foi engano.
 

castanhos

  ela costumava perguntar o que eu estava pensando. pela primeira vez na minha vida eu fui sincero o suficiente para não responder.
  os ponteiros dos meus pensamentos resvalam no meu cérebro apertado; pensar confunde e confusão transmite-se. ao invés disso, ela fez uma pergunta mais violenta
  “pra quê serve a gente?”;
  compro tempo digerindo em voz alta a pergunta “a gente as in eu e você?”
  “é”, ela responde. não sei. tento saber.
  acabo dizendo que não sei mesmo.
  a postura dela chama atenção. um prédio, não. havia gosto. e a sensação da tempestade de areia. a língua corre delicada e cuidadosa pelos sulcos e arrepios das costas, percorre todo o sabor,
termina numa respiração no pescoço.
  coluna ereta; olhar imprevisível. um animal selvagem apreensivo:
  um leopardo ou uma onça. os olhos calmos e espertos. nos livros da estante.
  pupilas como florestas inteiras.
  eu não conseguia decidir se esses olhos estavam decifrando o enigma da vida ou só planejando a próxima vítima.
  uma gazela ou uma zebra. eu.
  ela poderia vestir uma blusa lilás; seria leve, o terror negro do seu cabelo preto preso comprido sobre a sua tez branca tão branca;
  ela poderia vestir uma saia também branca e nós poderíamos dançar. se ela me olha como um rio que desaba sobre mim, não me perco. não abaixo a cabeça diante do olhar dela. apenas ando em direção a cadeira elétrica.
  o olhar dela é a minha cadeira elétrica. a minha falta de sono.
  não, ela vestia uma blusa azul de manga comprida e um short jeans.
  ponho a minha mão no fogo pela ilusão. o silêncio não se sustenta e nós caminhamos na areia de um corredor estreito.
  de tão estreito estamos tão perto um do outro. sem nos confundir num só.
  ficamos mais perto que parece possível ficar.
  o grão de areia, vidro. vamos de uma ponta a outra sem pisar em nada sólido; vamos de uma bebedeira até o chocookie desejado. em meio a risadas irônicas, a luz estoura.
  a violência brota dos dedos compridos dela, a violência paira na sua atmosfera felina para terminar num caminho de fogo, num choro e numa aprendizagem.
  —hunts me down: the white leopard runs faster than I can begin to think.
  bites me in english. bites real hard.
  seus dentes fincam na carne e puxam
  até um pouco mais de dor;
  o corpo esvaziando-se. até o seu olhar de leopardo fingir-se satisfeito;
  violence: um carinho e um tapa, um beijo e um dano —
  as horas fugiram numa revoada alçando vôo,
  uma
  a
  uma
  com asas agressivas, sem se importar
  e nós não nos atrasamos para os próximos compromissos.
  observamos uma árvore frondosa submersa. os galhos tem dedos cheios de esperança. imóveis todavia. no brilho da superfície nota-se que tanto os magros quanto os gordos ficam famintos.
  a árvore prende-se e faz todos se perderem: torna a discussão inútil: o que é verde/ o que é azul/ o que é mar/ quanto é amor.
  depois de um salto, um olhar selvagem
  ela me domina. me diz do alto “você é um idiota” e eu concordo. me controla e perde o controle sobre si mesma.
  (um presente mas só percebo tarde demais.)
  os ponteiros do meu cérebro já erraram faz tempo, os da parede não falham;
  eu brinco com ela. são onze horas. hora de ir embora como todos os dias. é um piso no conflito: ela tem caninos brancos e tem instinto por sangue.
  ela brinca comigo. sua brincadeira leva garra e perigo; “eu amo você
  me desprezando terrivelmente assim.”
  um elástico a menos e o cabelo corre, a cabeça hipnotiza num momento em que todas as coisas baixam a guarda:
  os livros de português baixam a guarda, os aparelhos da polishop baixam a guarda, as almofadas baixam a guarda
  e eu não sou exceção. baixa-se a guarda quando os dentes mordem o elástico e a nuca se desvencilha da gola e desnuda-se num arrepio que desce o corpo.
  o corpo errado.
  a portaria é um carrossel. da mesma forma que o pote vai resistir, deus também vai e o meu cavalo não chega nem perto.
  o corpo inventa de ficar vermelho e doer todo. faço os cálculos certos para chegar às respostas erradas;
  os braços, as pernas, a língua dela desprendem-se de qualquer cálculo. pergunto a probabilidade e ela sabe a resposta — são probabilidades altas de arrependimento. sabe a resposta e sabe que nossas contas são feitas na matemática dela. distorcida e selvagem.
  muito além do tempo, ela não quer que eu volte mas também não quer que eu vá.
  je m’imagine rouquin. en train de parler français. avec ma barbe. le mercredi matin. en face de son bâtiment.
  por mais que tentem a mão é humana, os dedos são reais e não aguentam como nada aguenta.
  “então, pra quê serve a gente?”.
  agora. eu e você não servimos pra nada. por um tempo.
  a pele branca. onça. leopardo. violência não, dor. os pequenos olhos semicerrados e a certeza causam mais daquele machucado sem nome.
   so, what.
    i love you.
     are you afraid?
      no.
       then what’s the problem?
  that’s the whole problem: i am not afraid.
  as pupilas como florestas inteiras. em chamas. estou cercado.

 

Teoria do inconspícuo diário

Tateio no escuro; toco o branco com o nariz.
Nos encontramos numa derrota contra a gravidade.
Meus dedos não diferem um vestido, um sonho, um oceano.
Passa um riacho no peito; vejo sombras de olhos fechados,
a dança começa—

Pique esconde; sorriso na inquietude inadmitida.
Gira gira; gira só o coração desacompanhado.
Pressiona o meu peso contra o seu peso,
os meus cortes contra os seus hematomas;
sem careta sem pisão no pé, gira gira!

Pique pega: pique pega sem toque: pique pega psíquico;
o caos faz pipoca, o vento sopra e varre tudo.
Um buraco negro nos dá o mesmo destino.
Estamos aprendendo, o quê, estamos aprendendo, sim.
Somos o meu queixo na sua testa.

Falo sério mas soa como piada, uma risada.
Compassos desencontrados em leveza desavisada.
A coda e a falta de jeito constroem um desespero leve
até parar de girar, para, gira, para aos poucos.
Aplausos imaginários como um sol que nasce.

Embora estejamos prontos para um repertório inteiro,
passou da meia-noite e eu já me sinto uma abóbora.

Sem título #7

  Os nossos trinta e nove anos de casados a comemorar hoje me permitem admitir que como amante, fui melhor escritora, sem qualquer orgulho. Cartas, minha profissão. Lembro-me da minha devoção silenciosa que possuía com qualquer pedaço de papel que pudesse me aproximar de você, desde o dia em que nos olhamos como desconhecidos. Às vezes, deixava recado na secretária eletrônica lendo uma poesia. Noutras, abria sua agenda em uma data aleatória e fazia um rabisco, meio anônimo, muito meu. E sempre que viajava, mandava um postal. Os recados de ligações, bilhetes para resolver coisas da casa e listas de mercado eram minhas maneiras de declarar meu amor por você.
  Você, que nunca respondeu por escrito, me mostrou a irrelevância de uma folha em branco diante de um bosque que sequoias.

 

Eu poderia ficar um mês

 

  Eu poderia ficar um mês olhando àquelas paredes. Brancas. Muito brancas. Você estava deitado no sofá. Estava triste, jururu. Procedimento padrão, eu diria. Eu também estava.
– Sabe o que a Clarice Lispector disse?
  Eu poderia ficar um ano com os olhos viajando naquele branco. É estranho. Se você quiser pensar em nada, esvaziar a sua mente, o que vem à cabeça é uma tela branca. Mas branco é algo, branco é cor. E o branco daquelas paredes era mais branco que o branco da cabeça.
– Ela disse: “Quando não escrevo parece que estou morta”.
  O preto sim, o preto é a ausência de cores. Mas porque ninguém pensa no preto? Quer dizer, eu não penso. Talvez você também não, né?
– Se soubesse como andam as coisas por aqui, diria lá de cima: “Quando estou morta parece que não escrevo”.
  Uma risada triste, tristinha. Sabe, acho que a gente foge do preto. O preto dá medo. O branco, por mais que seja a luz, é, essa do fim do túnel, é branco, é paz.
– E você pode estar me ignorando, mas o que eu falei faz sentido se você parar pra pensar.
  Eu catei a última coisa da sala e depositei a última caixa em frente a porta. E me virei na direção do sofá, tentei pensar numa tela branca.
– Sabe, parece que ela não escreve, porque ela morreu. Mas ela escreve. Pelos dedos de quem leu Clarice. Tipo, Caio Fernando de Abreu, tipo essas garotinhas letradas.
  Fazia sentido? Não sei se fazia sentido. Sabe, ir embora. Sei lá. A vida ia deixar de ser A vida. Eu já estava de saco cheio. Abri a porta. E olhei para trás. Uma tristeza encoberta pelas costas do sofá – ninguém veio fechar a porta, nem me dar tchau. E eu estava indo.
  Mas olhando àquelas paredes, eu poderia ficar uma vida inteira.