Objeto na linha. Há um objeto na linha. Você sabe o que isso significa. É claro, você está no metrô e tem um objeto na linha e você sabe que vai se atrasar, mas não é isso, você sabe disso e sabe o que isso significa, todo mundo sabe. Se não sabe é porque não quer saber.
E então, você está no metrô e ouve isso e sabe o que é, mas é tudo diferente quando você presencia. Se tiver muita gente, ou se você estiver distraído, passa. Mas se acontecer do seu lado, não passa.
Geralmente é de forma bastante discreta. Geralmente é uma pessoa discreta. E se você já ouviu “Há um objeto na linha” e pensou no atraso, eu vou te dizer: é mesmo só um atraso para a maioria. Ou “estatística” como as pessoas costumam dizer. Para mim, não foi isso.
Ele estava vestindo uma camisa. Uma bem normal com uma calça jeans normal, quer dizer, seria: se ele tivesse menos de trinta. Mas ele tinha mais de quarenta e parecia um desses quarentões metido a “jovem”. Tudo bem por mim, não foi por isso que eu estava olhando para ele no momento.
O cara parecia sério, é claro. E tinha fones de ouvido. Estava ouvindo uma música. Clássica. Não que eu entenda de Música Clássica, mas aquela, aquela eu conhecia. Não sabia dizer o nome, não importa, eu conhecia. Esse era o motivo d’eu não tirar os olhos dele. Nem um segundo.
Eu estava logo atrás dele. Só a música, só a música lembrava minha mãe, mas nada, nada nele me lembrava ela. Só a música. E ainda assim eu lutava pra encontrar algo, algo dela nele. Só despertei do meu transe quando o som do Metrô começou a ecoar.
Foi quando o cara pulou. Você sabe, na linha. Havia um objeto na linha. E eu vi tudo. Foi como se aquilo tivesse acontecido comigo. Uma parte do meu corpo foi massacrado e dilacerado. Eu não consegui descobrir que parte, mas nunca esqueci. Nunca esqueci.
Depois todos subimos no metrô e a vida seguiu. Foi só um atraso. Pensei na minha mãe. Na música. Aquela música. Eu não sabia o nome.
– Eduardo, pára de chorar.
Ela já tinha limpado a minha ferida e ardeu pra caramba. Depois passou uma pomada na minha testa e falou pra eu ficar deitado no sofá de casa. E eu fiquei lá, nem sentia mais dor e calei a boca com o nariz fungando. Assim, a única coisa que chegava a mim era a música. Só a música, aquela Clássica. E meio que relaxei.
Depois acordei num susto com meu pai me segurando e minha mãe aplicando uma injeção na minha testa. Era anestesia: ela pegou agulha e linha e suturou o canto cortado da minha testa. Eu nem me lembro se chorei. Só lembro de estar no colo dela, da minha mãe, e ouvir:
– Vai passar, sempre passa.
Na hora eu acreditei, mas a verdade é que nem tudo passa. A música continua, a música do homem do metrô, a música da minha mãe, aquela mesma música. Enquanto estações ficam pra trás, acho que a música nunca vai passar.
E eu tento, com todas as minhas forças, andar na linha. Vou a festas de família. Trabalho, ganho salário, compro chocolate, xingo políticos, jogo futebol de vez em quando. Não digo o que eu sinto de verdade às vezes. Ainda assim… Ainda assim eu tenho esses sonhos estranhos. É verdade, eu tento andar na linha, o problema é que a linha é uma corda bamba e o mundo, um vendaval.