parcialmente sob as cobertas,
debaixo da carne e noite adentro,
onde os poemas fazem cócegas,
há um poste solitário, apenas um —
a luz só precisa iluminar a si mesma.
você não sabe —
o seu sangue não corre em vão;
corre com a pressa de quem sabe
a importância da matemática
mas nunca aprendeu a contar.
fecho a porta
e você diz que não há porta.
no mundo real, as pernas erram os passos;
mesmo com os cadarços bem amarrados,
é fácil tropeçar no próprio tropeço.

você não quer
seu sangue derramado inutilmente;
como se apenas o baque do seu corpo
ao cair inerte e sem vida no solo
já não fosse suficiente para fazer a terra hesitar —
e aí, o dia duraria um pouco mais
e o planeta ficaria pra trás.

em vão, as pernas erram pelo mundo real —
seus passos derramados na pressa
correm com o sangue de quem
sabe a matemática das cócegas
onde os poemas fazem-se importantes.
e aí, te espero no fim de uma carta
em que as palavras sonham ser carne.

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Recado dentro do livro

Ah marinheiro!
Como eu queria poder ter seguido viagem contigo.
Não fossem as tarefas que a hierarquia me trouxe,
Teria abandonado timão, âncoras, o barco todo
para viver contigo essa aventura de amanheceres tão distintos
E sempre desconhecidos

Seria de certo, novidade todo dia!
Como voltar a ser maruja,
quando a ansiedade do novo superava o medo do desconhecido,
quando tudo isso não era óbvio.
E ao cair da tarde, a noite chegaria
como um abraço silencioso.

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dia

o que você estava fazendo
quando o mundo mudou?
hoje, foi um dia agradável.
apesar do noticiário,
apesar do calor
insuportável.

o que faziam as pessoas
enquanto a história se tornava História?
hoje, também, morreu minha avó.
provavelmente muitos avós
e, claro, netos
(tenho sorte).

tudo cabe num dia,
pouco resta na memória.
de qualquer forma,
seguimos tropeçando
para a risada
ou para o tombo.

9/11/16,
para francisca lamonica
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cidades estranhas

É uma estrada;
possui um vazio
quase mais leve que a neve,
quase mais leve que o nada:
um vazio de criança despreocupada.
A pele sente um sentimento amplo
e o que se vê é um campo,
uma bola, uma boneca,
um beijo na testa
no fim da festa.
Diante dos meus pés,
a estrada se desenrola,
cansado e sem coração,
passo pesado
e caco de vidro na sola,
o corpo é recriado pela canção:
Carrega-se a pedra no meio do caminho.
Mas, de repente,
sinto o farol e me assusto.
Se tento olhar um pouquinho,
meus olhos ardem na luz incerta,
abrem como uma mente aberta.

Paralisado,
eu não tenho certeza se é um sonho.

ave

uma ave de rapina carrega m
eu coração: ninguém
me ensinou a esquecer. chut
ando pedras pela cidade vaz
ia como se fosse um milagre fic
ar sem causar problemas. faz
endo planos, o presente é pas
sado num piscar de olhos, o te
mpo inteiro. mas uma hora é se
mpre uma hora. daqui a 10 anos,
apenas 10 anos terão passado. o
carrossel gira e sempre está lá n
o mesmo lugar. entre suas garras,
uma ave de rapina ainda car
rega meu coração
e,
desse jeito,
eu viajo o mundo.

na fotografia II

na fotografia II

o vento sopra as fotografias
pela janela
e o tempo, embora mais velho,
mantém seu ritmo calmo e violento.

as ondas na praia são certeza
da lua irresoluta;
tornei-me aquela memória
indigna de confiança
que sempre me supus.

a luz azul está desaparecendo
aos poucos, ao longe.
o barulho continua me perseguindo
–eu tentei ser tudo
e não fui nada.

entendendo devagar que
não existe daqui a um ano
nem daqui a dez anos
–meu pra sempre durante
um átomo de tempo.

o vento sopra as fotografias
pela janela
e as águas salgadas e geladas do mar
ignoram nossos sorrisos anacrônicos.

nada (apenas tudo)

estávamos andando sobre as ondas,
ondas de vidro, colinas realmente.
e aquilo era só a gente; eu e você.
andamos até notar o horizonte:
a terra quadrada como um tabuleiro.
só faltavam os antípodas lá embaixo.
na ponta do mundo, miramos o espaço —
o infinito cósmico: o grande vazio,
nada na nossa frente, apenas
tudo. e, na inocência da ignorância,
caí: acabou o equilíbrio do nosso mundo,
éramos um tabuleiro de ondas sólidas
sobre uma pequena bolinha de gude.
no caminho até o chão, tudo ficou claro —
e eu sabia então que a queda iria
estilhaçar o vidro com o impacto
e tornar água todo aquele mar.
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a.v.

dia dos mortos

encher os pulmões não é suficiente.
o ar me preenche e depois vai embora —
como saberei que na hora
quando o coração dispara
o ar virá de novo? e abrir os olhos
não me faz enxergar: eu enxergo
só até onde a vista alcança.
em momentos de dúvida, confusão,
como poderei enxergar além? e
eu ando sobre uma terra que
se transforma/ sob um céu
que está sempre mudando —
mas não chove onde falta água
e a casa de toda gente inunda
e segue com a correnteza:
como viver nessa realidade
em que arremessam alvos em dardos?
meus sapatos estão gastos
mas eu sempre gostei de andar descalço:
pacientemente, as árvores crescem;
pacientemente, planto sementes
da forma que estas sementes
aparecem para mim.
às vezes, até me imagino
com uma mochila nas costas,
prestes a chegar em casa.
como se soubesse onde ela realmente fica.
como se ela ficasse em apenas um lugar.
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