Memória

Eu não me lembro,
era tarde
e eu provavelmente estava me sentindo estranho
e eu não lembro porque eu estava bêbado
e eu não me lembro por quê,
mas poderia ser que eu estou trancado numa sala fria,
preso numa sala no subsolo sem nada,
sem comida ou água,
poderia ser porque eu tenho uma namorada agora
e eu não sei o que fazer,

e eu não me lembro,
mas era azul, azul marinho, azul de noite,
eu não consigo me lembrar mais
mas nós estávamos deitados na calçada
e eu não me lembro o que a gente disse
apenas o céu azul,
tão azul quanto o azul consegue ser
e eu não me lembro
mas tem um sabor bom, engraçado
que eu adoraria guardar

mas está desaparecendo,
eu não me lembro,
eu nem lembro mais,
porque eu estava apaixonado por ela,
amor azul real,
e nós tínhamos a noite,
nós tínhamos o tempo juntos,
era um tempo nosso,
céu azul
e conversa fiada

e eu não me lembro mais,
eu vou sentir falta dessa memória,
eu quero sentir falta dessa memória,
mas como sentir falta
de algo que não existe mais na sua mente?
Eu não me lembro
como eu não me lembro o que eu fiz essa manhã,
mas foi grandioso
e muito maior que acordar dia
após dia

sem lembrar a gente no chão
olhando para o céu azul
e tendo aquela conversa,
eu não me lembro,
eu não me lembro,
eu não me lembro,
e,
na verdade,
eu tentei tanto esquecer
que finalmente consegui.

Parabéns.
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Duas paisagens

  Nós criamos um mecanismo. Um que funcionava, para a passagem do tempo. Eu descrevo o que está diante dos nossos olhos, especialmente o que possui som, o que uma cega pode ver também.
  A paisagem mais descrita é a da janela do quarto. Um dia, nós estávamos deitados na cama e ela virou para o lado e iniciou uma descrição detalhada sobre o que se via.
  No desenho que ela já conhecia, tudo estava de acordo com as palavras dela. A casa vizinha, o jornaleiro. Um menino cantando errado; pequeno, de shorts. Enquanto falava, ela hesitou. Não quis dizer a cor da roupa dele para não correr o risco de errar. Senti que ia falar azul, eu não corrigi nada, não tinha nada errado no que ela via, exceto o que de fato estava além da janela.
  O sexo tornou-se um dia chuvoso de calmaria. Talvez tornou-se seja uma palavra equivocada, talvez revelou-se descreva o que realmente aconteceu melhor, talvez. O que acontecia era um abraço ao silêncio após as poucas gotas de suor.
  Acionávamos o mecanismo. E brincamos sobre o novo vizinho, um ator da globo que já era velho há anos atrás quando ele ainda fazia novelas. Um homem quieto e aposentado, nós tínhamos medo da sua solidão, ficávamos observando ele lavar o portão e a calçada com a mangueira.
  Ela tem uma grande capacidade de ficar prostrada, numa posição fixa, enquanto eu sempre fico com o braço dormente, quando ficamos parados. Sempre dormente.
  Os dias do calendário tem a pressa de um vinho suave, passam devagar até o momento em que já tinham passado muitos, dias demais. O garoto que às vezes aparecia pela janela cresceu. Nem usava mais seus shorts vermelhos, feios, inesquecíveis.
  O vapor do café aquece e umedece meu queixo e eu olho a janela numa tentativa prever a duração do nosso silêncio. Talvez o silêncio seja bom; talvez ela também não me fale que o que eu vejo está incompleto, talvez.
  Azul é a minha cor preferida.