Dois setembros

O sujeito cobre o peito
com as duas mãos
sem acreditar que há ali
um coração
e uma bala de chumbo;
de repente,
não há nada mais a fazer.
resta apenas deixar o corpo cair.
Mesmo se você espera o tiro,
o tiro é inesperado:
é no domingo de manhã
que cobrirei o peito incrédulo
e ali haverá um coração,
uma bala e sangue;
ao deixar meu corpo apenas cair
confirmarei a morte
ao passar por dentro de uma nuvem
no céu azul do mês que inicia.
O homem não pode ser derrotado,
apenas destruído;
eu me equilibrarei
sobre nomes curtos
entre esses meses
que têm o mesmo nome.

Hikouki/Pontas gastas

Às vezes, eu imagino um avião passando no céu,
imagino quem está indo, quem está animado, triste,
quem está prestes a nunca mais voltar.
Imagino também que eu não estou nele.
No meu caso, crio e recrio a cena da despedida:
a despedida é perfeita,
o momento em que o pecado mental desaparece,
a morte prematura, a absolvição por um dia,
depois um ano.

Fora da terra será doloroso porque
todas as minhas raízes serão arrancadas à força
e haverá uma neblina de sangue
sobre o Estado do Rio de Janeiro —
todas as minhas sementes ruins,
toda estrutura torta que eu construí
fará jorrar um pouco de mim,
um pouco de suor, saliva, pus.

Ainda presa na parte mais suja de terra,
que não se tira facilmente das unhas,
estarão todos os quebra-cabeças abandonados
de mim mesmo,
as peças machucadas como se um bebê
tentasse a toda vitalidade encaixar
um quadrado no espaço de um triângulo.

Um líquido cortante como sinal do tempo esguio
continuará seu ciclo de dilaceramento:
que me faz sorrir a cada derrota própria,
sorrir e esmurrar o sorriso de vidro polido.

O inevitável é que estarei no avião,
haverá uma despedida
e logo após, parto
num parto que como todo nascimento e morte
vem antes do esperado, ninguém está preparado.
Parto ao meio de mim e assim se parte
a parte infeccionada do que nem pode restar
daquilo que eu tentei dizer
mas ninguém entendeu mesmo.

A balada do homem perfeito

A vida é, muitas vezes, formada de atalhos que não se notam. Havia um homem chamado Noboru que morava em uma casa confortável para uma pessoa. Ele produzia máscaras destinadas aos festivais e ao teatro. Pode-se dizer, então, que uma máscara sutilmente moldada e pintada com delicadeza por Noboru saía de seu cuidado para chegar até um ator. Sua máscara fazia do ator completo e o ator, assim, fazia seu espetáculo capaz de criar a sensação de incrível, o indescritível que a arte sempre é capaz de proporcionar e, também, o inevitável desprezo algumas vezes. Esses atores, aliados a essas máscaras características, tão bem produzidas e utilizadas, poderiam deixar uma platéia inteira sem palavras, apenas aplausos. Às vezes, lágrimas. Outras, risos. Se nós pensarmos, então, num atalho, as máscaras de Noboru eram isso: a fuga das palavras.

A casa de Noboru era bem mobiliada, não lhe faltava a comida e todos o tratavam com respeito por ser tão jovem e tão desenvolvido em algo difícil de ser conquistado, chamado por vezes de equilíbrio pelos homens de sua vizinhança. A admiração por ele era grande, pois encontravam em Noboru um homem cordial, bem-sucedido e que tinha a capacidade de criar a arte – ele não fazia apenas máscaras, tocava diversos instrumentos, escrevia e era um ator, ele mesmo. Os homens do teatro sempre recorriam a ele, porque o teatro requer sempre ir mais longe e as máscaras de Noboru evoluíam junto com a necessidade de surpreender o povo mais uma vez.

Foi num dia de verão que ele parou para observar mais atentamente um tocador de shamisen – o instrumento é semelhante a um banjo, porem com o cabo longo e corpo pequeno, som mais delicado. Assim como ele, era um homem que cultivava serenidade em seu semblante. No entanto, diferentemente dele, o músico tinha os ombros rebaixados, o olhar caído e sinais da idade num corpo aparentemente jovial. Ele tocava uma música lenta que a cada nota cortava um pedacinho do ouvinte, as cordas soavam no máximo do que se pode esperar do som de uma corda tensionada. Junto com a melancolia do shamisen, a voz do músico de rua acompanhava a canção num volume próximo ao inaudível.

Noboru esperou a canção terminar para não apenas cumprimentar o notável artista, como também para questionar alguns detalhes que não faziam sentido para ele. Perguntou, por exemplo, porque alguém capaz de compor e interpretar uma canção tão bonita deixava seus dias tornarem-se esquecimento na rua sem hoje e ontem. Perguntou mais, soube que a música que ouvira era “a balada do homem perfeito”. E ouviu mais do tocador de shamisen, ouviu que aquela era a única alternativa que restava a ele, o único caminho que podia seguir, o único ofício ao qual fora reduzido e, mais importante, era o único jeito que ele podia e sabia agir e, portanto, continuaria ali.

Em casa, o confeccionador de máscaras refletiu sobre o que lhe fora dito, sem chegar a qualquer conclusão. Após comer, sentou-se na sala contra a parede e admirou um pouco a própria residência, a disposição das máscaras na parede, os móveis. Sentiu o calor do verão perder a força com a noite e, de olhos fechados, imaginou os insetos seguindo seu curso de vida, o sapo pulando no velho lago, as árvores recebendo os ventos e aliviando, assim como ele, um pouco da tensão de viver. Lentamente, o cansaço do dia tomou seu corpo numa conquista justa, natural para a manutenção de todas as tênues existências que o completavam.

No meio da noite, no entanto, um baque surdo o acordou. Seu primeiro reflexo foi verificar as janelas com cautela. Ao dar dois passos, deparou-se com um homem vestido de negro, já segurando dois de seus quadros mais valiosos. Noboru sabia quem era e sabia que o Abe-san perdera toda sua colheita por causa de uma praga, tinha consciência de que, diferentemente de si, o homem possuía filhos e mulher. Então, fez um cumprimento corporal e voltou a sentar-se contra a parede em que dormia. Abe notou a complacência do dono da casa e pegou mais alguns intes valiosos apenas. Antes de sair, ainda parou na direção de Noboru e curvou-se pedindo desculpas.

No dia seguinte, agiu como se nada tivesse acontecido. Até passou por Abe na rua, trocaram cumprimentos formais apenas. Aquilo o perturbou pouco, pois sabia que tinha feito o certo, a certeza clara e nua o trazia calma, uma das suas ferramentas de trabalho. Poucos dias depois, uma máscara lhe foi encomendada para ser utilizada para uma peça grandiosa que estrelaria o ator mais conhecido e respeitado de todo o Japão. Todo o trabalho o fez esquecer parcialmente o roubo à sua casa, embora tal acontecimento o tenha impulsionado a acrescentar alguns traços novos na arte final da máscara depois.

O trabalho sempre fora o caminho seguido por Noboru, que encontrava nele toda a meditação de que precisava. Esculpir as máscaras de madeira é um trabalho complicado no qual não se pode perder a concentração, não se pode pensar naquela coisa que foi um aborrecimento: tudo está ali, no mínimo detalhe da máscara, dos sentimentos que a máscara pede.
Foi na semana que Noboru entregou a máscara pronta que outra vez encontrou um ladrão na sua sala. Outro conhecido, dessa vez apenas de vista. Descobriria seu nome em outra ocasião, Matsui-san. Era um homem pobre que passava por tempos ruins e não conseguia arranjar emprego. Ele levou alguns móveis da sala, também pediu desculpas antes de sair. Tornou-se repetitivo, ao longo de todo a estação, mais dois homens (Date-san e Iwata-san) que mal tinham o que comer levaram mais pertences da sua casa, ao que ele consentiu, pois jamais negaria a alguém que tanto precisava, assim era Noboru.

No dia que em recebeu seu ordenado pelas últimas máscaras, sentou-se ao lado do tocador de shamisen que todos os dias permanecia ali. Ele ouviu novamente a mesma canção de outrora, a Balada do Homem Perfeito. Não disse uma palavra dessa vez, talvez começasse a entender que aquilo realmente era a única forma que ele sabia tocar a sua vida. Algo mais ele percebeu, embora soubesse tocar outras canções, aquela sem dúvida era sua preferida e que ele jamais pararia de tocar. Se tocasse música folclórica, talvez ganhasse mais moedas, mas, então, deixaria de ser o tocador de shamisen para virar só mais um homem em busca do sustento.

Os roubos à sua casa já o tinham deixado com pouquíssimos pertences e o preocupavam, mas ele não sabia como agir. Um dia antes do simpático Sato-san vir e levar quase tudo que restava consigo para seus muitos filhos e família comprida, Noboru decidiu ir até o governo para fazer com que os homens de direito tomassem nota do que estava acontecendo na sua vizinhança.

O que aconteceu com Noboru foram problemas de categoria. Ao ouvir sua história, o homem do governo o dirigiu para um gabinete que lidaria com o quesito de roubos e furtos. Ele foi até lá, mas ao ouvirem a mesma história, encaminharam-no para os que tratavam especificamente de assaltos, já que houvera contato entre o assaltante e o assaltado. Não resolveu sua questão, voltou no dia seguinte para ser reencaminhado ao homens da lei que resolveriam seus danos morais e desses homens foi redirecionado ao setor governamental que lidaria melhor com o assunto, a pobreza da vizinhança. Quando lhe mandaram de volta para alguns dos gabinetes e setores os quais ele já visitara, um dos homens do governo lhe disse que um problema como aquele era um problema de “força maior”.

Depois de alguns dias desperdiçados, voltou para casa. Antes, parou e apenas ouviu o shamisen, Noboru estava se sentindo mal, uma angústia por ter as mãos atadas. O mar tranquilo de pensamentos tornara-se uma ressaca pela falta de resolução para as coisas que vinham acontecendo. Embora estivesse se sentindo assim, tinha certeza de que agira certo em todas as vezes. Ainda assim, algo estava errado. Em sua casa vazia – exceto por sua esteira de dormir, onde normalmente ficava quando os ladrões vinham – ele recebeu mais alguns pedidos de máscara. Sua cabeça, no entanto, não estava realmente lá e, por mais que os resultados fossem de beleza incríveis (e tristes) para qualquer um, aquela arte não dava respostas a Noboru e não o satisfazia de modo algum.

Certa noite, quase um mês depois do início de sua crise artística, um velho apareceu em seu apartamento. Conhecia-o de vista, sabia seu nome também, era o Chiba-san. Por estar tão desbalanceado, Noboru talvez nem reparasse no furto do vizinho. Mas ele tinha problemas nas costas e locomovia-se com dificuldades, mais: ele veio para furtar justamente o único pertence restante de Noboru, sua cama, onde ele estava tentando dormir. O dono da casa prontamente levantou e, não só isso, ajudou o velho a carregar a esteira – que não era pesada – até a sua casa.

Já era alta madrugada e o velho Chiba-san andava devagar. À altura do amanhecer, o sol frio aparecia no fim do horizonte. Ainda começando a clarear, Noboru carregava a esteira para o velho e observava as casas humildes no caminho. Da mesma forma que encontrava todos os homens que levaram coisas da sua casa no mesmo estado miserável em que estavam antes do furto, Abe-san, Date-san, Matsui-san, Iwata-san e Sato-san, todos o olharam em silêncio, sem nenhuma palavra para dirigir-lhe. Chegou ao cubículo de Chiba-san e deixou sua esteira lá. Despediu-se, o velho agradeceu e pediu desculpas. Noboru voltou pelo mesmo caminho de onde viera. O sol já iluminava e aquecia um pouco mais. Na volta, porém, nenhum dos homens estava à vista, todos eles se recolheram às suas casa, diferentemente dos outros que já desde escuro continuavam trabalhando em seus quintais ou pequenas plantações arduamente.

Após andar, cansado de não ter dormido à noite, ele pretendia ouvir um pouco do tocador de shamisen. Quando chegou ao ponto da rua em que ele sempre ficava, no entanto, não havia homem nenhum lá, apenas o próprio shamisen. Instintivamente ele sentou e começou a tocar o instrumento como se o dominasse. O som misturava-se com as ondas violentas que passavam pelo seu pensamento. Naturalmente, o que lhe esperava em casa era apenas uma casa, sem nada. Assim também se sentia, como se dentro de si houvera, há não muito, algo além dos orgãos e agora restava-lhe o vazio de ter apenas os orgãos como talvez todos os outros. Os seus acordes progrediam lentamente. Tirava o essencial de cada noite. As notas soavam melancolicamente. Sem perceber, suas ideias estavam no formato de mar tranquilo novamente, mais que isso: ele tocava aquela mesma música que sempre ouvia, a balada. Sem pressa e sem público, demorou-se nas partes da canção de que gostava mais e até cantou as palavras que julgara nunca ter ouvido, a letra quase inaudível que pouco se notava junto ao som do shamisen.

Como pode alguém ser tão certo e estar tão errado?
Como pode alguém que colore ficar tão desbotado?
Como pode ser tão difícil para o homem perfeito ser amado?

E o homem desprendeu-se de qualquer noção anterior e nem sentiu os traços da idade alojarem-se no seu corpo ainda jovem – não sentiu os ombros rebaixarem, as costas encurvarem, o olhar cair.